Era um feriado prolongado, vulgo semana santa, em 1973 quando Gilberto Gil escreveu os primeiros versos da canção que viria a ser um hino contra a opressão militar. Convidado pela sua gravadora da época, Gil tinha a missão de compôr ao lado do amigo e companheiro de empresa, Chico Buarque. Reunidos na varanda do apartamento de Chico, que beirava a Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro, ambos eram vítimas da censura de suas músicas e ambos já haviam sido exilados pelo governo. A revolta que teve uma consequência.
O nome dela é "Cálice", um dos grandes exemplos de como se usar a ambiguidade a favor de uma mensagem. Com um claro duplo sentido do verbo conjugado "cale-se", a canção está longe de ser apenas um discurso contra um governo. Suas metáforas vinham desde referências bíblicas (não à toa o feriado em si foi uma inspiração) e iam até a paisagem e do consumo feito daquela tarde.
A parceria foi realizada para festival da Phonogram de 1973, a gravadora da dupla, durante o auge dos shows musicais no Brasil. Chico e Gil a apresentaram para o público mesmo sendo "sugerido" que não o façam. Porém, eles apenas cantarolaram a melodia e apenas soltaram um sonoro "Cálice" em meio às estrofes. O microfone de Chico Buarque foi cortado na hora e a música foi interrompida. A produção alegou problemas técnicos.
Cinco anos se passaram e "Cálice" fora finalmente lançada. A música fez parte do disco "Chico Buarque", de 1978. Gilberto Gil, porém, não esteve na gravação. Milton Nascimento passou a fazer os vocais. Maria Bethânia, dando um teatral para a música, também lançou "Cálice" no mesmo ano, no álbum "Álibi". Oficialmente nas lojas, a canção passou a figurar na boca dos manifestantes anti-ditadura, virando uma grande inspiração para o movimento que derrubou o governo militar em 1985.
Nos dias atuais, a música voltou a figurar no repertório de Chico Buarque após o mesmo ouvir uma versão repaginada, feita pelo rapper em ascensão, o Criolo. Com críticas à desigualdade e violência das periferias brasileiras. O vídeo foi parar no YouTube, viralizou, e chegou aos ouvidos do velho Chico. Emocionado com a versão, o cantor não titubeou em cantar "Cálice" pela visão de Criolo, surpreendendo a plateia que ali estava.
"Cálice" foi lançada há mais de 40 anos, mas continua sendo uma verdadeira aula de história, retratando o sentimento de castração do povo brasileiro daquela época. A música mostra o fim do pavio da sofrência, tendo em vista o direito de lutar e questionar, não havendo necessidade de um "filtro" externo para definir um gosto. Não se trata só de uma música.